segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Sobre Agroecologia, Transição Agroecológica e Extensão Rural

Gervásio Paulus¹

(Dedico este texto ao querido colega, amigo e mestre José Antonio Costabeber [in memorian], com quem pude aprender muito, em particular sobre os conceitos de Agroecologia e Transição Agroecológica. Aprendi, sobretudo, com a sua convivência, a importância de exercitar “a prática de pensar a prática”)

Diz um ditado chinês que a sabedoria começa pelo nome correto das coisas. Muitas vezes, trocar o nome de algo ou de alguém é fonte de confusão. E o risco maior que existe quando se dá um nome errado para alguma coisa é consagrar um equívoco. Assim, por exemplo, a palavra microbacia passou a ser entendida por muitos, inclusive por técnicos da área agronômica, como sinônimo de práticas de conservação do solo e da água ou, mais estritamente, de terraceamento. Expressões como fazer microbacias, tornaram-se comuns, como se isso de fato fosse possível, como se elas já não existissem há milhares ou milhões de anos, desde a conformação do relevo que delineou os divisores de água e a confluência desta para um mesmo curso de vazão.

Com a palavra Agroecologia corre-se o mesmo risco, quando esta é confundida (ainda que com uma intenção meritória, no caso estimular a promoção de formas mais sustentáveis de produção) com um estilo particular de agricultura, mais freqüentemente com a orgânica. Ocorre que estes estilos de agricultura, qualquer seja a sua denominação (orgânica, biológica, biodinâmica, etc., conforme os matizes que lhes conferem seus precursores), pressupõe um conjunto de normas e procedimentos mais ou menos definidos. A Agroecologia, por sua vez, não se confunde com nenhuma dessas correntes em particular, mas expressa um campo de conhecimentos científicos que oferece um conjunto de princípios e metodologias para o manejo ecológico dos agroecossistemas que não devem ser confundidos com determinadas práticas ou normas de produção (da mesma maneira que não se deve confundir microbacia com terraço, como dito acima). Já foi dito que vivemos uma época de mudança, mas mais do que isso, vivemos uma mudança de época. Estamos realmente precisando de mudanças. E estas serão tão mais profundas, quanto mais refletirem a postura de seres sencientes que somos. Precisamos de mudanças estruturais, mas o maior desafio é o pensamento sistêmico. É por isso que afirmamos que a Agroecologia é uma “ciência no campo da complexidade” (Caporal, Costabeber e Paulus, 2009). Nessa perspectiva, a Agroecologia, mais do que simplesmente tratar sobre o manejo ecologicamente responsável dos recursos naturais, situa-se em um campo do conhecimento científico no âmbito do que Morin (1999) identifica como sendo do “pensar complexo” (em que complexus significa aquilo que é tecido junto).

Por essas razões, agricultura convencional e Agroecologia são incomparáveis. Em outras palavras, não se pode comparar quilos com metros, da mesma sorte que não é correto comparar, por exemplo, a Medicina com o efeito de determinado tratamento ou terapia, ou ainda atribuir a poluição da água ou do ar à Ecologia... Podemos, isto sim, nesse último exemplo, dizer que a falta de conhecimento ecológico (interdependência, interações entre organismos, ciclos biogeoquímicos, etc.) ou a desconsideração deste por interesses de ordem econômica é que resultaram no problema da poluição... Assim, não faz sentido atribuir à Agroecologia a culpa por este ou aquele problema agronômico e, muito menos, a um fenômeno mercadológico que impõe a oscilação dos preços de um determinado produto agrícola, seja ele produzido de forma certificada ou não.

Entendendo que as diferentes formas de agri-culturas resultam da coevolução do ser humano e do ambiente, propõe-se abordagem metodológica que inclui a valorização e o resgate do saber tradicional, isto é, que foi historicamente forjado ao longo de gerações, através da observação e da relação direta com a natureza. Ademais, assume-se que a sustentabilidade, como um objetivo estratégico a ser alcançado, deve ser entendida em uma perspectiva multidimensional (social, econômica, ambiental, ética, política e cultural). Nesse sentido, podemos inclusive ter uma agricultura orgânica convencional, baseada em monocultivos orgânicos e orientada exclusivamente para um nicho de mercado, por exemplo, o que significa, a rigor, a erosão dos princípios agroecológicos...

Gostaríamos de não precisar falar em transição agroecológica. E, de fato, concordamos que em muitas situações não se justifica o uso desse conceito, como é o caso das agriculturas tradicionais indígenas e dos pecuaristas familiares. Mas se o fazemos é porque a agricultura dita convencional é ainda amplamente hegemônica, e é necessário avançar nas formas de manejo em direção a agroecossistemas mais sustentáveis. Ninguém ignora, por exemplo, o uso intensivo de agrotóxicos no Brasil e nos sistemas produtivos, não apenas de grãos, mas também de hortaliças (termo que inclui frutas, olerícolas e flores). Sem falar nos problemas que se manifestam em sistemas intensivos de produção animal. Em um esforço de síntese, Costabeber (1998), diz que

A transição agroecológica refere-se a um processo gradual de mudança, através do tempo, nas formas de manejo dos agroecossistemas, tendo-se como meta a passagem de um modelo agroquímico de produção para outro modelo ou estilos de agricultura que incorporem princípios, métodos e tecnologias de base ecológica. (...). Refere-se a um processo de evolução contínua, multilinear, e crescente no tempo, sem ter um momento final determinado. (Grifos meus, GP)

Não se espere, portanto, que a Agroecologia ofereça um pacote tecnológico, no melhor estilo do que ocorreu no auge da Revolução Verde. Nesse sentido, Caporal (2017), em um texto curto no qual defende o enfoque científico do conceito de Agroecologia, muito embora não faça nenhuma referência ao caráter multidisciplinar dessa ciência ou disciplina científica, tampouco às múltiplas dimensões da sustentabilidade (talvez por considerar que esses aspectos já estivessem suficientemente abordados – e entendidos! – em textos anteriores, nos quais tais pontos foram desenvolvidos), faz uma crítica certeira ao discurso de que é preciso retomar a “velha e boa” extensão rural, ao afirmar que “o difusionismo voltou com força”, ainda que disfarçado de “‘difusão verde’ no velho modelo extensionista”. Em vez disso, o desafio que se coloca para a pesquisa, extensão e produtores, como já dissemos em um texto escrito 1993 (mimeografado, disponível na Biblioteca Central da Emater-RS) é o de construir conhecimentos, que deverão ser aplicados de acordo com a realidade de cada região. Isso significa construir, de forma participativa, contextos de sustentabilidade. Em outras palavras, é necessário traduzir, local ou regionalmente, princípios agroecológicos em formas tecnológicas específicas. Vale lembrar que princípio, como bem definiu um agricultor, é onde tudo começa.


            ¹Engenheiro Agrônomo, Mestrado em Agroecossistemas. Extensionista Rural da EMATER-RS.
E-mail: gpaulus@emater.tche.br

Referências Bibliográficas

1. CAPORAL, Francisco Roberto (org.); COSTABEBER, José Antônio e PAULUS, Gervásio. Agroecologia: uma ciência do campo da complexidade. Brasília, 2009: 111p.
2. CAPORAL, Francisco Roberto. A Agroecologia não é, não deve e não precisa ser tudo. 2017, 03p.
3. COSTABEBER, J. A. Acción colectiva y procesos de transición agroecológica en Rio Grande do Sul, Brasil. Córdoba, 1998. 422p. (Tese de Doutorado).
4. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. São Paulo: Bertrand Brasil, 1999.
5. PAULUS, Gervásio. Agroecologia: rumo a um desenvolvimento rural sustentável. (Mimeo), 1993. 10p.

3 comentários:

  1. Olha!!São textos sempre intrigantes...O desafio tem sido cada vez maior: a soja a R$ 60,00 a saca não tem quem segure..Tudo vai abaixo..Estamos na mais intensa fase da Revolução verde...

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  2. A última vez que tive uma palestra com Costabeber ficou um ensinanemnto: É PRECISO VERIFICAR E AVALIAR A SUSTENTABILIDADE AGRÍCOLA EM AGROSSISTEMAS DE BASE FAMILIAR..Essa é a ideia que deve nos perseguir sempre...

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  3. Transgênicos estão com os dias contados, diz especialista da CTNBio
    Professor da Unicamp afirma que a maioria dos fabricantes do setor vai falir porque a tecnologia é cara, tem vida curta e já nasce ultrapassada. "A lei da natureza é mais forte"
    por Cida de Oliveira, da RBA publicado 02/12/2017 11h56, última modificação 02/12/2017 13h26
    MARCHA CONTRA A MONSANTO/CANADÁ
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    REPRODUÇÃO
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    A biotecnologia está envolta em riscos e incertezas que a transformaram em unanimidade entre os consumidores: todos torcem o nariz para esses produtos
    Lei da natureza
    Segundo Habib, os laboratórios que desenvolvem plantas, sementes e outros tipos de organismos geneticamente modificados têm custos altíssimos. São altos também os riscos aos investidores nas diferentes fases, desde a pesquisa, o desenvolvimento, o uso e depois do uso. E há carências e fragilidades científicas envolvendo o risco inerente à biotecnologia e à biossegurança. Ou seja: não funcionar e ainda causar danos ambientais.

    Além disso, os recursos humanos envolvidos são altamente especializados, caríssimos, apesar de pobres no conhecimento das ciências básicas. Sem contar a disputa entre as empresas. "E apesar dos carteis, há o imenso risco de, ao ser lançado, o produto biotecnológico ser ultrapassado em pouquíssimo tempo, ou mesmo nem servir. Uma semente transgênica desenvolvida para ser resistente a herbicidas, ou as plantas transgênicas que contêm bactérias tóxicas, para matar os insetos que as atacam, têm vida muito curta, abreviada pela grande concorrência e sobretudo pela força da lei da natureza."

    Uma lei, segundo ele, que determina que em quaisquer contatos constantes entre a população de qualquer ser vivo e um fator que a coloque em risco de vida, vai resultar em um desenvolvimento de resistência a esse fator. "Nessa lei da natureza, as plantas que são atacadas por agrotóxicos passam a ser resistentes a eles, por isso aumentam as quantidades e a toxicidade. Do mesmo modo, as toxinas das plantas transgênicas vão deixando de ser mortais para os insetos alvo."

    O resultado é uma das consequências da ultra especialização das biotecnologias. Um problema, conforme Habib, porque ao mesmo tempo em que os pesquisadores dominam um conhecimento bastante específico, perdem a visão holística da ciência e de como a vida como um todo funciona.


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