segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Plano-Safra do Semiárido: populismo ou realidade?

Por: Francisco Roberto Caporal

O governo federal lançou, no dia 06 de julho de 2013, o Plano-Safra para o Semiárido. Na ocasião o Blog do Planalto destacava o discurso da Presidenta: “Esta reivindicação do Plano-Safra do Semiárido é um reconhecimento de duas questões. Primeiro, que é possível conviver com a seca. E quando a gente fala conviver, nós estamos querendo dizer: a seca não pode virar uma catástrofe. (...) A seca pode ser perfeitamente controlada (sic), afirmou Dilma.”

No texto oficial, divulgado pelo governo, consta que “as ações são voltadas para estimular os sistemas de produção de convivência com o Semiárido. Para isso, as medidas promovem a infraestrutura hídrica e o estoque de alimentação animal...” Algumas outras informações podem ser extraídas das notícias e discursos disponibilizados nos sites oficiais da Presidência da República e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), como se apresentará a seguir.

Até a presente data (30 de julho de 2013) ainda não foi disponibilizado nenhum documento mais consistente, que detalhe as medidas anunciadas, razão pela qual qualquer análise que se faça, neste momento, é arriscada, pois carece de informações mais aprofundadas. De toda a forma, vale a pena iniciar uma reflexão a respeito, inclusive para incentivar que o Plano, que tem duração de um ano, venha a ser acompanhado em sua implementação. Do mesmo modo, é importante que sejam formuladas algumas perguntas e enunciadas algumas hipóteses que sirvam como orientação para o monitoramento das ações.

Segundo o governo as medidas devem beneficiar 1.600.000 estabelecimentos agropecuários do Semiárido, dos quais, ainda segundo o governo, 1.520.000 são agricultores familiares. Qual o significado político desta preferência para a zona mais afetada pela seca? Serão as medidas anunciadas, de fato, aquilo que o Semiárido e seu povo rural necessitam? Este povo rural foi ouvido?

Embora os discursos tenham enfatizado que estavam sendo adotadas “medidas estruturantes”, em nenhuma delas se fala das piores mazelas do Semiárido. Não se trata nada sobre a questão da distribuição e acesso à terra e, portanto, da necessidade urgente da reforma agrária nesta região. Do mesmo modo, o texto é insuficiente no que tange à questão do acesso à água. De fato, pelo texto oficial não se sabe onde está a tal promoção da “infraestrutura hídrica”, como consta no início do documento oficial. Será que tudo virá através do crédito? De toda a forma, foram anunciados recursos para 12 mil cisternas, como veremos mais adiante.

Como era de se esperar, a maior parte das medidas anunciadas repetem o mesmo repertório de programas clássicos do Ministério do Desenvolvimento Agrário, somadas a algumas outras que serão examinadas a seguir. Vejamos uma a uma.

O maior anúncio do governo foi a disponibilização de R$ 7 bilhões para o crédito rural. Tomando como base os números apresentados pelo governo federal, do total destes recursos, R$ 4 bilhões estarão disponíveis para 1.520.000 agricultores familiares. Os outros R$ 3 bilhões estão destinados para os 80.000 estabelecimentos não familiares (médios e grandes produtores). Não parece um despropósito esta disparidade? Especialmente quando um dos problemas do Semiárido já é a desigualdade, outra vez há um privilégio aos médios e grandes produtores. 

Outros R$ 400 milhões para crédito serão liberados via Banco do Nordeste ampliando o valor da linha emergencial de crédito para atender “agricultores familiares, produtores rurais e empreendedores prejudicados pela estiagem”. Vejam que esta frase é do governo e fica difícil entender qual a diferença entre agricultores familiares e produtores rurais. Será que os primeiros não são produtores? E quem são os empreendedores? Outra vez, é certo que a maior fatia deste crédito será apropriada por médios e grandes produtores.

Seguindo com a questão do crédito, é sabido que a maioria das famílias rurais do Semiárido nunca teve acesso às políticas de crédito rural, em especial as famílias mais pobres, que representam, segundo o censo de 2006, cerca da metade da agricultura familiar da região. Qual será o milagre através do qual este problema de acesso seria resolvido agora? Como chegará o crédito a estas famílias? Mas, mais importante: Será o crédito o caminho para que as famílias mais pobres possam conviver com a seca? A hipótese é que elas não terão acesso, outra vez. E se tivessem, o que fariam com crédito em plena seca?

É verdade que o governo anunciou que a Assistência Técnica pode ser financiada junto com o financiamento agropecuário. Entretanto, o limite possível para o pagamento de assistência técnica embutido no crédito é de 2% do valor tomado no banco. Ora, este valor não paga o custo de assistência técnica nem para os grandes financiamentos, quanto menos para os pequenos tomadores. Mesmo que o governo tenha anunciado que serão perdoados do custo pela assistência técnica aos agricultores que pagarem em dia as suas contas com os bancos, isso não é garantia de acesso à assistência técnica, muito menos para os mais pobres.

Mas o governo anuncia que haverá recursos para contratar entidades para oferecerem serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) para 347 mil famílias. Embora sem saber de onde vem este número mágico, o que ele revela é que a intenção é atender apenas cerca de 20% das famílias “beneficiadas” pelo pacote de medidas. E os demais? Seguiremos com deficiência de Ater na região?

Assim mesmo, atender a 347 mil famílias rurais supõe a disponibilidade de entidades que possam reunir um total de 3.470 extensionistas. Mas não é só isso, pois há outra medida, chamada de Fomento, que deverá atender a 30 mil famílias (que se supõe sejam aquelas mapeadas pelo Programa Brasil Sem Miséria), as quais receberão R$ 3 mil (não reembolsáveis) sendo que o uso destes recursos do “fomento” será orientado pela assistência técnica. Isto significa outros 300 extensionistas. Ou seja, são necessários quase 3.800 extensionistas que não podem ser os mesmos que já atuam mediante contratos das entidades de Ater com o governo federal. Ademais, a execução de outros programas anunciados como o PAA e o PNAE, também são altamente dependentes de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater). Tem-se aí outro quebra-cabeça. Observe-se que o governo não anunciou o volume de recursos para a Ater no Semiárido. Quanto haverá e de onde virão os recursos para Ater? Teremos entidades de Ater em condições de oferecer o número de técnicos em questão?

O governo anuncia, ainda, taxas de juros especiais para o Semiárido. Isto é, 1 a 3% ao ano no custeio e 1 a 1,5% ao ano nos créditos para investimento. Nas demais regiões os juros serão de 1,5 a 3,5% e de 1 a 2%, respectivamente. Isto significa que se o agricultor do Semiárido tomar um crédito de custeio de R$ 5 mil com juros de 3% pagará R$ 150,00 de juros, já os agricultores do Sul do país que tomarem este mesmo valor pagarão R$ 175,00. Isto é, os do Semiárido terão uma “vantagem” de R$ 25,00 por ano. Se for um crédito para investimento do mesmo valor com a menor taxa (1%) o agricultor do Semiárido pagará R$50,00 de juros enquanto o do Sul (1,5%) pagará R$ 75,00. Outra vez, a “vantagem” dos agricultores do Semiárido será de R$ 25,00 ao ano. Ora, convenhamos, esta diferença é mais populismo que apoio.

Uma boa medida foi o anúncio do aumento do rebate do Pronaf B (Microcrédito) que passa de 25% para 40%, para agricultores que paguem em dia o seu financiamento. Sabe-se, entretanto, que há um grupo grande de agricultores inadimplentes e, por isso, muitos municípios estão impedidos de acessar a este crédito. Em 2012, quase 400 municípios do nordeste tiveram suspensas as contratações de operações do Pronaf B. Assim, se já há um número grande de inadimplentes, seria este anúncio uma vantagem? Para quantas famílias? E de onde viria a assistência técnica?

A mesma questão vale para o anúncio de aumento dos recursos para as compras públicas, tanto do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) com R$ 700 milhões, quanto para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que contará com R$ 650 milhões. Como se sabe, ambos os programas têm sido acessados apenas por agricultores mais organizados e que recebem orientação da assistência técnica e extensão rural. Ademais, no caso do PNAE, a maioria absoluta dos municípios do Semiárido ainda não cumpre a Lei que obriga que 30% dos recursos da merenda escolar sejam destinados à compra diretamente da agricultura familiar. Assim, estes dois programas são promessas para o futuro, até porque a maioria dos agricultores familiares passam por uma situação de enorme crise de produção e, portanto, se tiverem, têm pouco para vender ao governo, e esta situação só se reverterá para a esta maioria quando voltarem as chuvas. 

O PAA aparece com uma novidade. R$ 100 milhões destinados à compra de alimentação animal e R$ 50 milhões para a compra de sementes e mudas. Mas o anúncio não apresenta detalhes operacionais. Como será o acesso? 

Outro anúncio diz respeito ao aumento do número de famílias beneficiadas pelo programa Garantia Safra, de 971.117 para 1.200.000 agricultores. Este é um programa que depende da adesão e pagamento de cotas por parte dos agricultores, dos municípios, dos estados e da União. Logo, o anúncio feito é uma estimativa sobre a probabilidade de potenciais beneficiários. Só mais tarde se poderá saber quantos, de fato, serão beneficiados. Na safra passada aderiram 1.114 municípios e sabe-se que o Semiárido tem um total de 1.135 municípios.

Uma questão importante, mas vagamente presente no anúncio governamental é a Irrigação. O texto oficial diz apenas o seguinte: “Apoio à agricultura irrigada no Semiárido por meio da redução das taxas de juros, contribuindo para a expansão da produção nos perímetros irrigados e os investimentos privados em irrigação na região.” Outra vez crédito? Será só para os perímetros irrigados? Eles sofreram com a seca? E o que são os “investimentos privados”? E os agricultores familiares que estão fora dos perímetros irrigados, não terão direito a este apoio para irrigação?

Por outro lado, na página do MDA, informa-se que serão destinados pelo Ministério da Integração Nacional R$ 126 milhões para a construção de 12 mil cisternas. Segundo o blog do Planalto, o BNDES (Fundo Social) estaria disponibilizando este valor. Trata-se de uma parte dos recursos previstos no acordo de cooperação que envolve Fundação Banco do Brasil e MDS, destinado a implantar 64 mil “cisternas produtivas” (2ª água) até meados de 2014, para famílias de baixa renda que já tenham a cisterna de água para consumo da família (1ª água). Outra vez, uma meta pouco audaciosa, dado o número de famílias agricultoras do Semiárido.

Por fim, o anúncio do governo federal também fala de apoio às agroindústrias, mas não diz como e nem quanto de recursos financeiros serão disponibilizados. 

Conclusões

O Plano-Safra para o Semiárido além de ser uma novidade é uma incógnita. A execução de várias destas medidas implica na criação de oportunidades de acesso às mesmas, o que tem sido um problema recorrente das políticas públicas na região, que acabam não chegando à maioria da população do Semiárido.

Observa-se, ainda, que a carência de Assistência Técnica e Extensão Rural e a pouca ênfase dada a esta atividade no Plano, pode ser outro inibidor de suas possibilidades de alcance.

Ademais, chama a atenção o fato do governo que está prestes a lançar um Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica não fazer nenhuma referência neste sentido. Não há nenhuma medida de apoio à transição agroecológica, que é uma das necessidades relativas à convivência com o Semiárido. 

Por tudo isto, é preciso que organizações como a Articulação do Semiárido (ASA), as representações dos agricultores familiares e a academia reflitam e debatam sobre este Plano-Safra especial, acompanhem a sua implementação e avaliem a efetividade das mesmas. É necessário que este Plano não se resuma apenas a um anúncio populista e eleitoreiro, pois a população do Semiárido não merece isso.

Referências bibliográficas

Brasil, Blog do Planalto. Presidenta Dilma lança Plano Safra Semiárido em Salvador. Disponível em blog.planalto.gov.br Acesso dia 07 de julho de 2013.

Brasil, Ministério do Desenvolvimento Agrário Ações para o Semiárido beneficiarão mais de 1,6 milhão de famílias. Disponível em www.mda.gov.br Acesso dia 07 de julho de 2013.