segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A agricultura camponesa e ecológica pode alimentar o mundo?



Esther Vivas*

Calcula-se que a população mundial, em 2050, chegará aos 9,6 bilhões de habitantes, segundo um relatório das Nações Unidas. O que significa 2,4 bilhões a mais de bocas para alimentar. Diante destes números, existe um discurso oficial que afirma que para dar de comer para tantas pessoas é imprescindível produzir mais. No entanto, é necessário nos perguntarmos: Hoje, falta comida? Cultiva-se o bastante para toda a humanidade?Atualmente, no mundo, “são produzidos alimentos suficientes para dar de comer para até 12 bilhões de pessoas, segundo dados da FAO”, afirmava Jean Ziegler, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, entre os anos 2000 e 2008. E recordemos que o planeta é habitado por 7 bilhões. Sem contar que todo dia é jogada 1,3 bilhão de tonelada de comida, em escala mundial, um terço do total que se produz, conforme um estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Segundo estes dados, comida não falta.

Os números demonstram que o problema da fome não é por causa da escassez de alimentos, apesar de alguns se empenharem em afirmar totalmente o contrário. O próprio Jean Ziegler dizia: “As causas da fome são provocadas pelo homem. Trata-se de um problema de acesso, não de superpopulação”. Em definitivo, é uma questão de falta de democracia nas políticas agrícolas e alimentar. De fato, na atualidade, estima-se que quase uma em cada oito pessoas no mundo passa fome, de acordo com os dados da FAO. A aberração da fome atual é que ocorre em um planeta da abundância de comida.

Então, por que há fome? Por que muitas pessoas não podem pagar o preço cada dia mais caro dos alimentos, seja aqui ou em países do Sul. Os alimentos se tornaram uma mercadoria e se você não pode pagar por ela, preferem jogar a dar para comer. Do mesmo modo, os cereais não são produzidos apenas para alimentar as pessoas, mas também os carros, como os agrocombustíveis, e os animais, criação que necessita de muito mais energia e de recursos naturais do que se, com esses cereais, a pessoas forem alimentadas diretamente. Produz-se comida, mas uma grande quantidade dela não vai para o nosso estômago. O sistema de produção, distribuição e consumo de alimentos está organizado unicamente para dar dinheiro para aquelas empresas do agronegócio, que monopolizam do início ao fim a cadeia agroalimentar. Eis, aqui, a causa da fome.

Por conseguinte, por que alguns continuam insistindo em que é preciso produzir mais? Por que nos dizem que é preciso uma agricultura industrial, intensiva e transgênica que nos permita alimentar o conjunto da população? Querem nos fazer acreditar que as causas da fome serão a solução, mas isto é falso. Mais agricultura industrial, mais agricultura transgênica, como já se demonstrou, significam mais fome. Existe muita coisa em jogo, quando falamos de comida. As grandes empresas do setor sabem muito bem disso. Daí que o discurso hegemônico, dominante, diz-nos que elas têm a solução para a fome mundial, quando na realidade são aquelas, com suas políticas, que a provocam.

Outro paradigma agroalimentar

Diante do que vimos, o que podemos fazer? Quais alternativas há? Se todos nós queremos comer e comer bem, é necessário apostar por outro modelo de alimentação e agricultura. Antes, afirmávamos que agora há comida suficiente para todos. Isto é assim, com uma dieta diferente, com muito menos consumo de carne do que a dieta ocidental atual.

Nossa “adição” à carne faz com que precisemos de muito mais água, cereais e energia para produzir comida, para engordar o gado, do que se nossa dieta fosse mais vegetariana. Calcula-se, segundo o Atlas da Carne, que 1/3 das terras de cultivo e 40% da produção de cereais no mundo são destinadas para alimentá-los. Tornar compatível a vida humana com os limites e recursos finitos do planeta terra também passa pelo questionamento do que comemos.

Além disso, outro tema se apresenta, caso se proponha prescindir de uma produção de alimentos industrial, intensiva, transgênica, que alternativa temos? A agricultura camponesa e ecológica pode alimentar o mundo? Cada vez são mais as vozes que dizem “sim”.

Uma das mais reconhecidas é a de Olivier de Schutter, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, entre os anos 2008 e 2014, que afirmava em seu relatório, “A agroecologia e o direito à alimentação”, apresentado em março de 2011, que “os pequenos agricultores poderiam duplicar a produção de alimentos em uma década, caso utilizassem métodos produtivos ecológicos” e acrescenta: “faz-se imperioso adotar a agroecologia para colocar fim à crise alimentar e ajudar a enfrentar os desafios relacionados com a pobreza e a mudança climática”.

Segundo De Schutter, a agricultura camponesa e ecológica é mais produtiva e eficiente e garante melhor a segurança alimentar das pessoas do que a agricultura industrial: “A evidência científica demonstra que a agroecologia supera o uso dos fertilizantes químicos no fomento da produção de alimentos, sobretudo nos entornos desfavoráveis onde vivem os mais pobres”. O relatório “A agroecologia e o direito à alimentação”, a partir da sistematização de dados de vários estudos de campo, deixava claro: “Em diversas regiões, desenvolveram-se e foi provado com excelentes resultados técnicas muito variadas, baseadas na perspectiva agroecológica. (...) Tais técnicas, que conservam recursos e utilizam poucos insumos externos, tem um potencial comprovado para melhorar significativamente os rendimentos”.

Um dos principais estudos, dirigido por Jules Pretty, e citado neste relatório da ONU, analisava o impacto da agricultura sustentável, ecológica e camponesa em 286 projetos de 57 países pobres, em um total de 37 milhões de hectares (3% da superfície cultivada em países em desenvolvimento), e suas conclusões não deixam dúvidas: a produtividade destas terras, graças à agroecologia, aumentou em 79% e a produção média de alimentos cresceu em 1,7 toneladas anuais (até 73%). Posteriormente, a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) tomaram de novo estes dados para analisar o impacto da agricultura ecológica e camponesa, especificamente nos países africanos. Os resultados ainda foram melhores: o aumento médio das colheitas nos projetos na África foi de 116% e na África Oriental de 128%. Outros estudos científicos, citados no relatório “A agroecologia e o direito à alimentação”, chegavam às mesmas conclusões.

Além disso, a agricultura ecológica e camponesa não apenas é altamente produtiva, inclusive mais do que a agricultura industrial, especialmente nos países empobrecidos, mas, como afirmavam os estudos anteriormente citados, também cuida dos ecossistemas, permite “conter e inverter a tendência na perda de espécies e a erosão genética” e aumenta a resiliência à mudança climática. Como também dá maior autonomia ao campesinato. “Ao melhorar a fertilidade da produção agrícola, a agroecologia reduz a dependência dos agricultores dos insumos externos e das subvenções estatais”.

Mais apoios

Outro importante relatório que aponta nesta direção são as conclusões a que chegou um dos principais processos intergovernamentais realizados para avaliar a eficácia das políticas agrícolas: a Avaliação Internacional do papel do Conhecimento, da Ciência e da Tecnologia em Desenvolvimento Agrícola (IAASTD, em suas siglas em inglês). Uma iniciativa estimulada, em um primeiro momento, pelo Banco Mundial e a FAO, e que contou com o seu patrocínio e de outras organizações internacionais como o Fundo para o Meio Ambiente Mundial (FMAM), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o PNUMA, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

O objetivo desse processo era avaliar o papel do conhecimento, a ciência e a tecnologia agrícola na redução da fome e da pobreza no mundo, a melhora dos meios de subsistência nas zonas rurais e a promoção de um desenvolvimento ambiental, social e econômica sustentável. A avaliação, realizada entre os anos 2005 e 2007, contou com uma direção integrada por representantes de governos, ONGs, grupos de produtores e consumidores, entidades privadas e organizações internacionais, com um claro equilíbrio geográfico, com a participação de 400 especialistas mundiais para realizarem este estudo, que incluía uma avaliação mundial e cinco de regionais.

Suas conclusões marcaram um ponto de inflexão, já que pela primeira vez um processo intergovernamental destas características, e patrocinado por estas instituições, realizava uma aposta clara e firme na agricultura ecológica e destacava sua alta produtividade. Em concreto, o relatório afirmava que “o aumento e o fortalecimento dos conhecimentos, a ciência e a tecnologia agrícola, orientados para as ciências agroecológicas, contribuirão para resolver questões ambientais, ao mesmo tempo em que mantém e aumenta a produtividade”.

Desse modo, considerava que a agricultura ecológica era uma alternativa real e viável à agricultura industrial, que garantia melhor a segurança alimentar das pessoas e que era capaz de reverter o negativo impacto ambiental desta última. O relatório dizia: “A pegada ecológica da agricultura industrial já é muito grande para ignorá-la (...). As políticas que promovem uma adoção mais rápida de soluções de eficácia (...) para a mitigação e a adaptação à mudança climática podem contribuir para frear ou inverter esta tendência e, ao mesmo tempo, manter uma adequada produção de alimentos. As políticas que promovem práticas agrícolas sustentáveis (...) estimulam uma maior inovação tecnológica, como a agroecologia e a agricultura orgânica, para aliviar a pobreza e melhorar a segurança alimentar”.

Os resultados da IAASTD consideravam, igualmente, a agricultura industrial e intensiva como geradora de “desigualdades”, acusavam-na pelo “manejo insustentável do solo ou da água” e de práticas baseadas na “exploração trabalhista”. A avaliação concluía que “as variedades de cultivos de alto rendimento, os produtos agroquímicos e a mecanização beneficiaram principalmente aos grupos dotados de maiores recursos da sociedade e corporações transnacionais, e não aos mais vulneráveis”. Algumas afirmações inéditas, até o momento, no panorama internacional, por parte de instituições e governos.

Este relatório, com estas conclusões, foi aprovado pelas autoridades de 58 países em uma assembleia plenária intergovernamental, em abril de 2008, em Johanesburgo, em que mostraram acordo e avaliaram os resultados. Os Estados Unidos, Canadá e Austrália, como não é surpresa para ninguém, negaram-se a subscrever esta avaliação e mostraram reservas e desconformidades à totalidade.

Conclusão

Os relatórios de Olivier de Schutter, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, e da IAASTD destacam, sem ambiguidades, a alta capacidade produtiva da agricultura camponesa e ecológica, igual ou superior, dependendo do contexto, à agricultura industrial. Ao mesmo tempo, consideram que esta permite um maior acesso aos alimentos, por parte das pessoas, ao apostar em uma produção e uma comercialização local. Além disso, com suas práticas respeita, conserva e mantém a natureza. O "mantra" de que a agricultura industrial é a mais produtiva e de que é a única que pode dar de comer à humanidade demonstra-se, com base nestes estudos, totalmente falso.

Na realidade, a agricultura camponesa e ecológica não só pode alimentar o mundo, como também é a única capaz de fazer isso. Não se trata de um retorno romântico ao passado, nem de uma ideia bucólica do campo, mas, sim, de fazer confluir os métodos campesinos de ontem com os saberes do amanhã e de democratizar radicalmente o sistema agroalimentar. 


*Artigo publicado por Publico.es, em 20/05/2014. Tradução: CEPAT, Instituto Humanitas.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Os mitos do sistema alimentar

Esther Vivas*

Dizem-nos que o sistema agrícola e alimentar é o melhor dos possíveis. Um modelo altamente produtivo que permite dar de comer a todo o mundo, muito eficiente, que oferece uma grande variedade de alimentos, que facilita o trabalho aos agricultores e o melhor… que nunca antes tínhamos comido de uma maneira tão segura. A sério? No entanto, quando analisamos em detalhe, e com números na mão, a cada uma destas afirmações vemos que são falsas. Quem as diz pensa que pelas repetir muitas vezes nós vamos engolí-las. A verdade é que o atual modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos assenta numa série de mitos que são mentira.


Acabar com a fome

Um dos ‘mantras’ mais repetidos é que a agricultura industrial e intensiva, com a sua alta produtividade, pode acabar com a fome. De facto, na atualidade, segundo dados de Jean Ziegler que foi relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, há comida no mundo para 12.000 milhões de pessoas, e no planeta somos 7.000 milhões. Não deveria haver ninguém sem comer. A realidade, porém, é bem diferente: um em cada oito habitantes no mundo, quase mil milhões, passa fome. Comida há, e muita, mas não acaba nos nossos estômagos… só no daqueles que se podem permitir a isso.

Mais comida não significa poder comer. Porquê? Os alimentos no sistema agroalimentar converteram-se numa mercadoria. A cadeia que une o campo à mesa está nas mãos de umas poucas empresas do agronegócio e dos supermercados que converteram o direito à alimentação num privilégio. Em consequência, ou tens dinheiro para pagar o preço cada dia mais caro da comida ou o acesso àquilo que dá de comer (terra, água, sementes), ou não comes. Não temos um problema de falta de produção ou superpopulação, mas de democracia, de acesso aos alimentos.

E quando nos falam de eficiência… que eficiência? A de um sistema que desperdiça anualmente, segundo dados da FAO, um terço da comida que produz para o consumo humano: um total de 1.300 milhões de toneladas. Alimentos para comer ou desperdiçar? Eis a questão. A agroindústria é o negócio da fome, assim como a banca é o negócio da pobreza.


Liberdade e variedade

Fazem questão de nos dizer que somos “livres” para escolher entre uma grande “variedade” de produtos. Os supermercados Caprabo dão-nos as boas-vindas, como “livre comprador”. No entanto, sob a ilusão da diversidade esconde-se a mais estrita uniformidade.

No campo, fornecem ao agricultor todo o tipo de sementes híbridas e transgênicas. No supermercado vendem-nos imensos alimentos. Mas nunca como agora tivemos tão pouca variedade de culturas. Em apenas um século, perdemos 75% da diversidade agrícola e alimentar, segundo dados da FAO. Alimentos que até há umas décadas eram inabituais, como a soja, atualmente tornaram-se omnipresentes. Nas linhas da grande distribuição encontramos sempre as mesmas marcas. Liberdade? Variedade? Bem, pelo contrário.


De pobres camponeses a camponeses pobres

Uma agricultura que beneficia o camponês? Onde? A agricultura industrial está pensada por e para o agronegócio e em detrimento daqueles que sempre cuidaram e trabalharam a terra. Senão, como se explica que na Europa mais de mil explorações agrárias tenham que fechar em cada dia? Assim o diz a Coordenadora Europa da Via Camponesa. Ou, que no Estado espanhol unicamente 4,3% da população ativa se dedique à agricultura? A resposta é fácil: quando se trata de vender os alimentos, quem menos ganha é quem os produz.

A diferença entre o preço que se paga ao agricultor no campo e o que nós pagamos no supermercado continua a subir. Hoje, o custo do produto alimentar multiplica-se em média por 4,52 da origem até ao destino. A diferença percentual entre o que se paga ao produtor e o que é pago ao “supermercado” por alimentos como abóbora, repolho e beringela é de 950%, 808% e 717% respetivamente, segundo o Índice de Preços na Origem e Destino. Passamos dos pobres camponeses aos camponeses pobres.


Segurança alimentar?

Afirmam que a comida nunca tinha sido tão segura. Mas então, como se explicam os escândalos alimentares que nos abanam dia sim dia sim? Desde as vacas loucas, passando pelo frango com dioxinas até aos produtos com carne de cavalo onde se supunha que só havia vaca. Não temos nem ideia do que colocamos nas nossas bocas. Ao mesmo tempo, as doenças ligadas ao que comemos continuam a aumentar. As “doenças ocidentais”, como a obesidade, a diabetes, os problemas cardiovasculares e o cancro resultado de uma “dieta ocidental”, altamente processada, com muita carne, gordura e açúcar são, tristemente, a melhor prova. Somos o que comemos. As consequências de uma agricultura e de uma alimentação “viciada” em agro-tóxicos, transgénicos e aditivos vários são claras. Que o sistema agrícola e alimentar é o melhor dos possíveis? Por favor, não nos enfiem o barrete.

*Artigo publicado em publico.es em 10 de outubro de 2014. Traduzido por Esquerda.net.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O mais novo fantasma da Monsanto

 Jeff Ritterman, M.D.*

Em El Salvador, CKDu tornou-se a segunda maior causa de mortalidade masculina. 
No Sri Lanka, número de mortes ultrapassa 20 mil. E no Brasil?

Estudo sugere: doença ainda inexplicada, que destrói rins e já matou milhares de agricultores, pode estar relacionada ao glifosato, herbicida-líder da transnacional

O herbicida Roundup, da Monsanto, foi vinculado à epidemia de uma misteriosa doença renal fatal que apareceu na América Central, no Sri Lanka e na Índia.

Há anos, os cientistas vêm tentando desvendar o mistério de uma epidemia de doença renal crônica que atingiu a América Central, a Índia e o Sri Lanka. A doença ocorre em agricultores pobres que realizam trabalho braçal pesado em climas quentes. Em todas as ocasiões, os trabalhadores tinham sido expostos a herbicidas e metais pesados. A doença é conhecida como CKDu (Doença Renal Crônica de etiologia desconhecida). O “u” (de “unknown”, desconhecido) diferencia essa enfermidade de outras doenças renais crônicas cuja causa é conhecida. Poucos profissionais médicos estão cientes da CKDu, apesar das terríveis perdas impostas à saúde dos agricultores pobres, de El Salvador até o sul da Ásia.

Catharina Wesseling, diretora regional do Programa Saúde, Trabalho e Ambiente (Saltra) na América Central, pioneiro nos estudos iniciais sobre o surto ainda não esclarecido na região, diz o seguinte: “Os nefrologistas e os profissionais da saúde pública dos países ricos não estão familiarizados com o problema ou duvidam inclusive que ele exista”.

Wesseling está sendo diplomática. Na cúpula da saúde de 2011, na cidade do México, os EUA rechaçaram uma proposta dos países da América Central que teria listado a CKDu como uma das prioridades para as Américas.

David McQueen, um delegado norte-americano do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, que posteriormente se desligou dessa agência, explicou a posição de seu país. “A ideia era manter o foco nos fatores de risco chave que poderíamos controlar e nas grandes causas de morte: doença cardíaca, câncer e diabetes. E sentíamos que a posição que assumimos incluía a CKD”.

Os norte-americanos estavam errados. Os delegados da América Central estavam certos. A CKDu é um novo tipo de doença. Essa afecção dos rins não resulta da diabetes, da hipertensão ou de outros fatores de risco relacionados com a dieta. Diferentemente do que acontece na doença renal ligada à diabetes ou à hipertensão, muitos dos danos da CKDu ocorrem nos túbulos renais, o que sugere uma etiologia tóxica.


Agricultor salvadorenho voltando dos campos. Palo Grande, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Hoje, a CKDu é a segunda maior causa de mortalidade entre os homens em El Salvador. Esse pequeno e densamente povoado país da América Central tem atualmente a maior taxa de mortalidade por doença renal no mundo. Os vizinhos Honduras e Nicarágua também têm taxas extremamente altas de mortalidade por doença renal. Em El Salvador e Nicarágua, mais homens estão morrendo por CKDu do que por HIV/Aids, diabetes e leucemia juntas. Numa região rural da Nicarágua, tantos homens morreram que a comunidade é chamada “A Ilha das Viúvas“.

Além da América Central, a Índia e o Sri Lanka foram duramente atingidos pela epidemia. No Sri Lanka, mais de 20 mil pessoas morreram por CKDu nas últimas duas décadas. No estado indiano de Andhra Pradesh, mais de 1.500 pessoas receberam tratamento para a doença desde 2007. Como a diálise e o transplante de rim são raros nessas regiões, a maioria dos que sofrem de CKDu irão morrer da doença renal.

Numa investigação digna do grande Sherlock Holmes, um cientista-detetive do Sri Lanka, dr. Channa Jayasumana, e seus dois colegas, dr. Sarath Gunatilake e dr. Priyantha Senanayake, lançaram uma hipótese unificadora que poderia explicar a origem da doença. Eles argumentaram que o agente agressor deve ter sido introduzido no Sri Lanka nos últimos trinta anos, uma vez que os primeiros casos apareceram em meados da década de 1990. Essa substância química também devia ser capaz de, em água dura, formar complexos estáveis com os metais e agir como um escudo, impedindo que esses metais sejam metabolizados no fígado. O composto também precisaria agir como um mensageiro, levando os metais até o rim.

Mural celebrando a vida agrária tradicional. Juayua, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Sabemos que as mudanças políticas no Sri Lanka no final dos anos 1970 levaram à introdução dos agroquímicos, principalmente no cultivo do arroz. Os pesquisadores procuraram os prováveis suspeitos. Tudo apontava para o glifosato, um herbicida amplamente utilizado no Sri Lanka. Estudos anteriores tinham mostrado que o glifosato liga-se aos metais e o complexo glifosato-metal pode durar por décadas no solo.

O glifosato não foi originalmente criado para ser usado como herbicida. Patenteado pela Stauffer Chemical Company em 1964, foi introduzido como um agente quelante, porque se liga aos metais com avidez. O glifosato foi usado primeiramente na remoção de depósitos minerais da tubulação das caldeiras e de outros sistemas de água quente.

É essa propriedade quelante que permite que o glifosato forme complexos com o arsênio, o cádmio e outros metais pesados encontrados nas águas subterrâneas e no solo na América Central, na Índia e no Sri Lanka. O complexo glifosato-metal pesado pode entrar no corpo humano de diversas maneiras: pode ser ingerido, inalado ou absorvido através da pele. O glifosato age como um cavalo de Troia, permitindo que o metal pesado a ele ligado evite a detecção pelo fígado, uma vez que ele ocupa os locais de ligação que o fígado normalmente obteria. O complexo glifosato-metal pesado chega aos túbulos renais, onde a alta acidez permite que o metal se separe do glifosato. O cádmio ou o arsênio causam então danos aos túbulos renais e a outras partes dos rins, o que ao final resulta em falência renal e, com frequência, em morte.

Por enquanto, a elegante teoria proposta pelo dr. Jayasumana e seus colegas pode apenas ser considerada geradora de hipóteses. Outros estudos científicos serão necessários para confirmar a hipótese de que a CKDu realmente se deve à toxicidade do glifosato-metal pesado para os túbulos renais. Até agora, esta parece ser a melhor explicação para a epidemia.

Outra explicação é a de que o estresse por calor pode ser a causa, ou a combinação entre estresse por calor e toxicidade química. A Monsanto, claro, tem defendido o glifosato e contestado a afirmação de que ele tenha qualquer coisa a ver com a origem da CKDu.

Ainda que não exista uma prova conclusiva a respeito da causa exata da CKDu, tanto o Sri Lanka quanto El Salvador invocaram o princípio da precaução. El Salvador baniu o glifosato em setembro de 2013 e atualmente está procurando alternativas mais seguras. O Sri Lanka baniu o glifosato em março deste ano por causa de preocupações a respeito da CKDu.

Mural celebrando a vida camponesa tradicional, Palo Grande, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

O glifosato tem uma história interessante. Depois de seu uso inicial como agente descamador pela Stauffer Chemical, os cientistas da Monsanto descobriram suas qualidades herbicidas. A Monsanto patenteou o glifosato como herbicida na década de 1970 e tem usado a marca “Roundup” desde 1974. A empresa manteve os direitos exclusivos até o ano 2000, quando a patente expirou. Em 2005, os produtos com glifosato da Monsanto estavam registrados em mais de 130 países para uso em mais de cem tipos de cultivo. Em 2013, o glifosato era o herbicida com maior volume de vendas no mundo.

A popularidade o glifosato se deve, em parte, à percepção de que é extremamente seguro. O site da Monsanto afirma:

"O glifosato se liga fortemente à maioria dos tipos de solo e por isso não permanece disponível para absorção pelas raízes das plantas próximas. Funciona pela perturbação de uma enzima vegetal envolvida na produção de aminoácidos que são essenciais para o crescimento da planta. A enzima, EPSP sintase, não está presente em pessoas ou animais, representando baixo risco para a saúde humana nos casos em que o glifosato é usado de acordo com as instruções do rótulo".

Por causa da reputação do glifosato em termos de segurança e de efetividade, John Franz, que descobriu a sua utilidade como um herbicida, recebeu a Medalha Nacional de Tecnologia em 1987. Franz também recebeu o Prêmio Carothers da Sociedade Americana de Química em 1989, e a Medalha Perkins da Seção Americana da Sociedade da Indústria Química em 1990. Em 2007, foi aceito no Hall da Fama dos Inventores dos EUA pelo seu trabalho com o herbicida. O Roundup foi nomeado um dos "Dez Produtos que Mudaram a Cara da Agricultura" pela revista Farm Chemicals, em 1994.

Nem todo mundo concorda com essa percepção a respeito da segurança do glifosato. A primeira cultura de Organismo Geneticamente Modificado (OGM) resistente ao Roundup (soja) foi lançada pela Monsanto em 1996. Nesse mesmo ano, começaram a aparecer as primeiras ervas daninhas resistentes ao glifosato. Os fazendeiros responderam usando herbicidas cada vez mais tóxicos para lidar com as novas superpragas que haviam desenvolvido resistência ao glifosato.

Além da preocupação a respeito da emergência das superpragas, um estudo com ratos demonstrou que baixos níveis de glifosato induzem perturbações hormonal-dependentes graves nas mamas, no fígado e nos rins. Recentemente, dois grupos de ativistas, Moms Across America (Mães em toda a América) e Thinking Moms Revolution (Revolução das Mães Pensantes), pediram à Agência Americana de Proteção Ambiental (EPA) para pedir um recall do Roundup, citando um grande número de impactos adversos sobre a saúde das crianças, incluindo déficit de crescimento, síndrome do intestino solto, autismo e alergias alimentares.

O glifosato não é um produto comum. Além de ser um dos herbicidas mais usados no mundo, é também o pilar central do templo da Monsanto. A maior parte das sementes da empresa, incluindo soja, milho, canola, alfafa, algodão, beterraba e sorgo, são resistentes ao glifosato. Em 2009, os produtos da linha Roundup (glifosato), incluindo as sementes geneticamente modificadas, representavam cerca de metade da receita anual da Monsanto. Essa dependência em relação aos produtos com glifosato torna a Monsanto extremamente vulnerável à pesquisa que questiona a segurança do herbicida.

As sementes resistentes ao glifosato são desenhadas para permitir que o agricultor sature os seus campos com o herbicida para matar todas as ervas daninhas. A safra resistente ao glifosato pode então ser colhida. Mas se a combinação do glifosato com os metais pesados encontrados na água subterrânea ou no solo destroi os rins do agricultor no processo, o castelo de cartas desmorona. É isso que pode estar acontecendo agora.

Um confronto sério está tomando corpo em El Salvador. O governo norte-americano tem pressionado El Salvador para que compre sementes geneticamente modificadas da Monsanto ao invés de sementes nativas dos seus próprios produtores. Os EUA têm ameaçado não liberar quase US$ 300 milhões em empréstimos caso El Salvador não compre as sementes da Monsanto. As sementes geneticamente modificadas são mais caras e não foram adaptadas para o clima ou para o solo salvadorenho.

A única “vantagem” das sementes OGM da Monsanto é a sua resistência ao glifosato. Agora que ele se mostrou uma possível, e talvez provável, causa de CKDu, essa “vantagem” já não existe.


Mural, Concepción de Ataco, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Qual a mensagem dos EUA para El Salvador, exatamente? Talvez a hipótese mais favorável seja a de que os EUA não têm ciência de que o glifosato pode ser a causa da epidemia de doença renal fatal em El Salvador e que o governo sinceramente acredita que as sementes OGM vão proporcionar um rendimento melhor. Se for assim, uma mistura de ignorância e arrogância está no coração desse tropeço na política externa norte-americana. Uma explicação menos amigável poderia sugerir que o governo coloca os lucros da Monsanto acima das preocupações acerca da economia, do meio ambiente e da saúde dos salvadorenhos. Essa visão poderia sugerir que uma mistura trágica de ganância, descaso e insensibilidade para com os salvadorenhos está por trás da política americana.

Infelizmente, existem evidências que corroboram a segunda visão. Os EUA parecem apoiar incondicionalmente a Monsanto, ignorando qualquer questionamento a respeito da segurança dos seus produtos. Telegramas divulgados pelo WikiLeaks mostram que diplomatas norte-americanos ao redor do mundo estão promovendo as culturas OGM como um impertativo estratégico governamental e comercial. Os telegramas também revelam instruções no sentido de punir quaisquer países estrangeiros que tentem banir as culturas OGM.

Qualquer que seja a explicação, pressionar El Salvador, ou qualquer país, para que compre sementes OGM da Monsanto é um erro trágico. Não é uma política externa digna dos EUA. Vamos mudar isso. Vamos basear nossa política externa, assim como a doméstica, nos direitos humanos, na vanguarda ambiental, na saúde e na equidade.

Pós-escrito: Depois que vários artigos a respeito da questão das sementes apareceram na mídia, o The New York Times informou que os EUA reverteram sua posição e devem parar de pressionar El Salvador para que compre as sementes da Monsanto. Até agora, os empréstimos ainda não foram liberados.

*Por Jeff Ritterman, no Truthout | Tradução: Maria Cristina Itokazu

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

PELA PROIBIÇÃO DO USO DE AGROTÓXICOS DENTRO DO CAMPUS DA UFRPE.

UMA LUTA A FAVOR DA VIDA.
Núcleo de Agroecologia e Campesinato, DCE e ADUFERPE  na  luta contra os agrotóxicos no campus da UFRPE-Recife.

Em 12 de outubro de 2012, o Núcleo de Agroecologia e Campesinato – NAC da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), protocolou uma carta à Reitora solicitando a proibição do uso de agrotóxicos dentro da área do Campus, aqui na sede de Dois Irmãos. (Protocolo nº 018109/2012-88)

Nossos argumentos, para este pedido de proibição, estão sustentados por um conjunto de fatores e agravantes, entre os quais destacamos:

a) Este Campus encontra-se dentro de uma APA – Área de Proteção Ambiental.
b) Os locais de uso dos venenos são locais de trânsito de pessoas sendo que a maioria delas sequer toma conhecimento dos riscos a que estão sujeitos.
c) As áreas onde são aplicados os agrotóxicos são próximas aos córregos ou canais de drenagem cujas águas alimentam o Rio Capibaribe.
d) A poluição ambiental dos venenos, inclusive em zonas próximas a prédios e restaurante (Mesa Farta - Associação dos Professores), coloca em risco todos os frequentadores e transeuntes.
e) Um dos agrotóxicos que continua sendo usado dentro do Campus é o herbicida Glifosato, proibido para uso em áreas urbanas pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
f) Pesquisas comprovam que os agrotóxicos causam graves danos à saúde e ao meio ambiente.

No mês de julho, a ADUFERPE e o DCE se associaram ao NAC nesta luta, protocolando outra carta à Reitora reiterando o pedido de proibição de agrotóxicos dentro do campus (Protocolo nº 23082.014462/2014-51, de 18/07/2014). Conjuntamente, as entidades promoveram uma serie de atividades no dia 18 de julho, entre elas a projeção do filme O Veneno está na Mesa 2, de Silvio Tendler, seguido de debates.

Também foi realizado um ato simbólico, que constou da colocação de faixas dentro do campus, pedindo o fim do uso de agrotóxicos e foram pregadas cruzes em vários locais da área da universidade, onde eventualmente são usados agrotóxicos. 




Durante o ato, que contou com a presença de estudantes, professores, servidores técnico-administrativos e de um grupo de indígenas Xukurus, foi encontrada na área uma caixa vazia do herbicida Roundup.


E outras embalagens de agrotóxicos, como exemplificamos, abaixo:


Na mesma data, o NAC entregou à Reitora um dossiê com um conjunto de informações, reforçando o pedido de proibição do uso de agrotóxicos dentro do campus, assim como um abaixo assinado com mais de 1.000 assinaturas de pessoas que fazem parte da comunidade universitária. Na ocasião, a Reitora disse que iria ler os documentos e depois chamaria as entidades (NAC, ADUFERPE e DCE) para uma conversa, o que não ocorreu até o momento.
No mesmo dia, o Departamento de Agronomia colocou uma nota na página da universidade, justificando o uso de venenos dentro da área do campus e argumentando sobre o “uso correto”.
Entretanto, segundo especialistas da área, não há possibilidades de “uso seguro” de agrotóxicos, muito menos em zonas urbanas, como é o caso do nosso Campus, que além de tudo está localizado em área de proteção ambiental. Como adverte a professora Raquel Rigotto, do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará, por um conjunto de razões que ela evidencia, deveríamos “reconhecer que não temos condições de fazer o uso seguro” dos agrotóxicos, razão pela qual deveríamos deixar de utilizar estes produtos “Já que as consequências do uso (in) seguro de agrotóxicos para a vida são graves, extensas, de longo prazo e algumas irreversíveis ou ainda desconhecidas.”, afirma a Doutora. 

Como agravante, no caso do Campus da UFRPE, em Recife, as áreas de hortas e de pesquisas agrícolas, onde normalmente são usados agrotóxicos, estão localizadas muito próximas de mananciais de água, o que indica que o uso desses produtos químicos pode trazer sérios riscos de contaminação dos recursos hídricos, além de afetar a fauna e a flora de uma área ambiental protegida por lei.




segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Quem tem medo da agricultura ecológica? (II)

Esther Vivas*

A agricultura ecológica despertou, nos últimos tempos, as mais variadas “iras”, sendo objeto de todos os tipos de calúnias. Seu êxito e múltiplos apoios foram proporcionais às críticas recebidas. No entanto, quem tem medo da agricultura ecológica? Por que tanto esforço em desautorizá-la?

Todas estas perguntas foram formuladas em um artigo anterior, onde analisávamos as mentiras por trás de afirmações como “a agricultura ecológica não é mais saudável, nem melhor para o meio ambiente do que a agricultura industrial e transgênica”. Hoje, abordaremos outras questões em relação à sua eficiência, o preço e a falsa alternativa que significa uma “agricultura ecológica” a serviço das grandes empresas. Como dizíamos então: diante da calúnia, dados e informação.

Da eficiência e o preço

“A agricultura ecológica é pouco eficiente e cara”, dizem seus detratores. Aqueles que realizam esta afirmação, esquecem-se que é exatamente o atual modelo de agricultura industrial o que desperdiça anualmente um terço dos alimentos produzidos para consumo humano, em escala mundial, 1,3 bilhão de toneladas de comida, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Trata-se de uma agricultura de “usar e jogar”. Consequentemente, quem é o ineficiente, aqui? Mesmo sem estes números, é óbvio que o atual modelo de agricultura industrial, intensiva e transgênica não satisfaz as necessidades alimentares básicas das pessoas. A fome, em um mundo onde se produz mais comida do nunca, é o melhor exemplo, tanto nos países do Sul, como aqui.

De sua parte, a agricultura ecológica e de proximidade demonstrou que garante melhor a segurança alimentar às pessoas do que a agricultura industrial e que permite uma maior produção de comida, especialmente em lugares desfavoráveis, segundo as palavras do relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, Olivier de Schutter, apoiando-se em seu relatório ‘A agroecologia e o direito à alimentação’. A partir dos dados expostos neste trabalho, a reconversão de terras em países do Sul para o cultivo ecológico aumentava sua produtividade em até 79%, na África, em especial, a reconversão permitia um aumento de 116% das colheitas. Os números falam por si.

Caso falemos do preço, sobretudo, fazendo a sua comparação com a qualidade, mais uma vez a agricultura ecológica sai em melhor posição. Talvez não pareça em um primeiro momento, pois há um discurso único, que se repete e se repete e se repete, que nos diz que o ecológico é sempre mais caro. No entanto, não é assim. Muitas vezes, depende de onde e do que compramos. Não é o mesmo comprar em um supermercado ecológico ou em um comércio ‘gourmet’ do que comprar diretamente dos camponeses, no mercado ou por meio de um grupo ou cooperativa de consumo agroecológico, nos primeiros os preços costumam ser muito mais caros do que nos segundos, onde seu custo pode ser igual ou, inclusive, inferior ao comércio tradicional em se tratando de um produto da mesma qualidade.

Além disso, teríamos que nos perguntar como pode ser que determinados produtos ou alimentos no supermercado sejam tão baratos. Estamos pagando seu preço real? Qual é a sua qualidade? Em que condições foram elaborados? Quantos quilômetros percorreram do campo à mesa? Muitas vezes, um preço muito baixo esconde uma série de custos invisíveis: condições de trabalho precárias na origem e destino, má qualidade do produto, impacto ambiental, etc. Trata-se de uma série de gastos ocultos que acabamos socializando entre todos, porque se a comida percorre longas distâncias e aumenta a mudança climática, com a emissão de gases de efeito estufa, quem paga por isso? Se comemos alimentos de baixa qualidade, que tem um impacto negativo em nossa saúde, quem os custeia? Em definitivo, como diz o refrão: Pão para hoje e fome para amanhã.

E não só isso, quando entramos no ‘super’, o que compramos? Calcula-se que entre 25% e 55% da compra no supermercado é compulsiva, fruto de estímulos externos que nos instam a comprar, sem qualquer raciocínio. Quantas vezes fomos ao supermercado para comprar quatro coisas e saímos com o carrinho cheio? O supermercado é uma máquina de vender, não resta a menor dúvida, é um dos espaços mais estudados de nossa vida cotidiana, para que nossa compra nunca seja aleatória.

Outra afirmação mil vezes repetida é a que diz que “a agricultura ecológica é apenas para os ricos”, ou quando quem fala busca o insulto, algo frequente entre o setor “antiecológico”, dirá que “a agricultura ecológica é apenas para mauricinhos”. Tanto em um caso como em outro, aos que afirmam estas palavras, asseguro que nunca colocarm o pé em um grupo ou cooperativa de consumo agroecológico, porque seus membros, em geral, podem ser qualificados com muitos adjetivos, mas de “ricos” e “mauricinhos” têm muito pouco. São pessoas que apostam em outro modelo de agricultura e alimentação, buscando se informar, tomar consciência, buscar dados contrastados sobre os impactos daquilo que comemos em nossa saúde, no meio ambiente, entre o campesinato.

Nesta vida, “instruem-nos” para pensar que “gastamos” dinheiro em comida, mas se trata de “gastar” ou “investir”? A educação é chave. Daí, que é fundamental fazer chegar os princípios e as verdades da agricultura ecológica ao conjunto da população. Comer bem, e ter direito a comer bem, são para todos.

Uma “agricultura ecológica” a serviço do capital

“A agricultura ecológica não tem fins sociais e aumenta a pegada de carbono”, dizem seus detratores. Aqui, a pergunta chave é: de que agricultura ecológica nós estamos falando? Como dizíamos no artigo anterior, uma das ameaças à agricultura ecológica é justamente sua cooptação, a assimilação de sua prática por parte da indústria alimentar. Cada vez são mais as empresas do ‘agribusiness’ e os supermercados que apostam neste modelo de agricultura livre de pesticidas e aditivos químicos, mas esvaziando-a de qualquer olhar para a mudança social. Seu objetivo é claro: neutralizar a proposta. Trata-se de uma “agricultura ecológica” a serviço do capital, com alimentos quilométricos, escassos direitos trabalhistas na produção e na comercialização. Esta não é a alternativa na qual nós apostamos por uma mudança no modelo agroalimentar. A agricultura ecológica, no meu entender, só tem sentido a partir de uma perspectiva social, local e camponesa, como sempre defendeu a maioria de seus impulsionadores.

Por outro lado, surpreende-me que os detratores da agricultura ecológica se preocupem tanto com a pegada de carbono e o impacto dos gases de efeito estufa no meio ambiente, quando sua aposta por uma agricultura industrial é precisamente uma das principais responsáveis dos mesmos. Segundo o relatório ‘Alimentos e mudança climática: o elo esquecido’, da GRAIN, entre 44% e 55% dos gases de efeito estufa são provocados justamente pelo conjunto do sistema agroalimentar global, como consequência da soma das emissões provocadas pela mudança no uso do solo e o desmatamento; a produção agrícola; o processamento, o transporte e o empacotamento dos alimentos; e os desperdícios gerados. Se aos críticos da agroecologia a mudança climática tanto lhes inquieta, sugiro que apostem em uma agricultura ecológica, local e camponesa.

Quem impõe o quê?

“Impõem-nos a agricultura ecológica. Eu quero comer transgênicos, e não me deixam”, dizem alguns, embora pareça uma brincadeira. No entanto, quem impõe o quê? A agricultura industrial, sim, foi resultado de uma imposição, a da Revolução Verde, promovida a partir dos anos 1940, e em décadas posteriores, por governos como o dos Estados Unidos e fundações como as da Ford e Rockefeller, e que implicou na progressiva substituição de um modelo de agricultura tradicional, onde os camponeses tinham a capacidade de decidir sobre o que e como cultivavam, por uma agricultura industrial “adicta ao petróleo e aos fitossanitários, que levou à privatização dos bens comuns, e em particular das sementes. Muitos camponeses não tiveram escolha. Hoje, vemos as consequências deste modelo agrário: fome, saída dos camponeses, patentes sobre as sementes, monopólio de terras, etc.

Além disso, a principal imposição agrária foi, sem dúvidas, a do cultivo transgênico, e a impossível coexistência entre agricultura transgênica e agricultura convencional e ecológica é o melhor exemplo. As plantações transgênicas, por meio do ar e a polinização, contaminam outras. É dessa forma que funciona o que poderíamos chamar “a ditadura transgênica”. Em Aragão e na Catalunha, nas áreas onde mais se cultiva transgênico, concretamente a variedade de milho MON 810 da Monsanto, a produção de milho ecológico praticamente desapareceu em razão dos múltiplos casos de contaminações sofridas. As evidências são irrefutáveis, e quem diz o contrário mente.

A enumeração de frases com o único propósito de desautorizar a agricultura ecológica poderia continuar. São tantas as falsidades vertidas que este artigo poderia ter três, quatro e até cinco partes, mas paro aqui. Espero que as informações e os dados levantados possam ser de utilidade para aqueles que frente a verdades únicas perguntam e questionam a realidade que nos é imposta.

*Artigo publicado no jornal espanhol Público, 14-07-2014. A tradução é do Cepat | Instituto Humanitas Unisinos.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Quem tem medo da agricultura ecológica? (I)

Esther Vivas*

A agricultura ecológica deixa alguns bem nervosos. É o que se constata, ultimamente, na multiplicação de artigos, entrevistas, livros que tem apenas o objetivo de desprestigiar seu trabalho, desinformar sobre sua prática e desacreditar seus princípios. Trata-se de discursos cheios de falsidades que, vestidos de uma suposta independência científica para se legitimar, contam-nos as “maldades” de um modelo de agricultura e alimentação que ganha progressivamente mais apoios. No entanto, por que tanto esforço para desautorizar esta prática? Quem tem medo da agricultura ecológica?

Quando uma alternativa é bem aceita socialmente, são duas as estratégias para neutralizá-la: a cooptação e a estigmatização. A agricultura ecológica é torpedeada por ambas. Por um lado, cada vez são mais as grandes empresas e os supermercados que produzem e comercializam estes produtos para atender a um florescente nicho de mercado e “limpar” a imagem, mesmo que suas práticas não tenham nada a ver com o que este modelo defende. Seu objetivo é cooptar, comprar, subsumir e integrar esta alternativa ao modelo agroindustrial dominante, esvaziando-a de conteúdo real. Por outro lado, a estratégia do “medo” é estigmatizar, mentir e desinformar sobre a mesma, confundir a opinião pública, para assim desautorizar este modelo alternativo.

E se alguém levanta a voz em sua defesa? Sofre insultos e desqualificações. Se um cientista se posiciona contra a agricultura industrial e transgênica, é tachado de “ideológico”. Como se defender este tipo de agricultura não respondesse a uma determinada ideologia, a daqueles que se situam na órbita das multinacionais agroalimentares e biotecnológicas e que muitas vezes cobram das mesmas. Se um “não cientista” a critica, então, seu problema é que não sabe, que é um ignorante. De acordo com estes, parece que só os cientistas e, em particular, aqueles que defendem seus próprios postulados, podem ter uma posição válida a respeito. Uma atitude muito respeitosa com a diferença. Outra prática habitual é qualificar quem critica de “magufo”, sinônimo depreciativo, segundo a gíria desta “elite científica”, de anticientífico. Vê-se que defender uma ciência a serviço do público e do coletivo implica em ser contra ela. Uma argumentação de loucos.

Vejamos, na sequência, algumas das afirmações mais repetidas para desqualificar e desinformar sobre a agricultura ecológica, e que ampliaremos em artigos subsequentes. Porque há quem acredita que repetir mentiras serve para construir uma “verdade”. Contra a calúnia, dados e informação.

O perigo dos agrotóxicos

“A agricultura ecológica não é mais saudável nem melhor para o meio ambiente”, dizem. Querem nos fazer acreditar que uma agricultura industrial, intensiva, que usa sistematicamente produtos químicos de síntese em sua produção, é igual a uma agricultura ecológica que prescinde dos mesmos. Incrível. Se as práticas agroecológicas emergem é precisamente como resposta a um modelo de agricultura que contamina a terra e os nossos corpos.

Há anos, a retirada e proibição de fitossanitários, agrotóxicos, utilizados na agricultura convencional foram uma constante, após se demonstrar seu impacto negativo sobre a saúde do campesinato e dos consumidores e no meio ambiente. Talvez o caso mais conhecido seja o do DDT, um inseticida utilizado para o controle de pragas desde os anos 1940 e que, devido à sua alta toxicidade ambiental e humana e pouca ou nula biodegradabiidade, foi proibido em muitos países. Em 1972, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos vetou seu uso ao considerá-lo um “potencial cancerígeno para as pessoas”. Outras agências internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, entre outras, denunciaram também estes efeitos. Mesmo assim, quem mantém a afirmação inicial – aqui rebatida – mostra-se ainda, e mesmo que possa surpreender, partidário do DDT e o segue defendendo, apesar de todas as evidências.

No entanto, o DDT não é um caso isolado. Cada ano, produtos químicos de síntese utilizados na agricultura industrial são retirados do mercado pela Comissão Europeia. Sem ir mais longe, em 2012, o Tribunal de Grande Instância de Lyon concluiu que a intoxicação do camponês Paul François e as consequentes sequelas em sua saúde foram devidas ao uso e manipulação do herbicida Lasso, da Monsanto, que não informava nem sobre a correta utilização do produto nem sobre seus riscos sanitários. A própria Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) sentenciava no artigo Control of water pollution from agriculture, em 1996, que o uso de pesticidas na agricultura tinha efeitos negativos em vários níveis: 1) Nos sistemas aquáticos, já que sua alta toxicidade e a persistência de químicos degradava as águas. 2) Na saúde humana, pois a inalação, a ingestão e o contato com a pele destes produtos químicos incidia no número de casos de câncer, deformidades congênitas, deficiências no sistema imunológico, mortalidade pulmonar. 3) No meio ambiente, com a morte de organismos, geração de cânceres, tumores e lesões em animais, através da inibição reprodutiva, e a disrupção endócrina, entre outros. Que fitossanitários serão proibidos amanhã? Impossível saber. Até quando permitiremos continuar sendo cobaias?

Brincando com a saúde dos países do Sul

Capítulo à parte mereceria a análise do impacto destes agrotóxicos sobre a saúde das comunidades próximas às plantações onde são aplicados. Inúmeros foram os casos documentados, especialmente em países do Sul, onde seu uso é mais permissivo. Na Argentina, temos o conhecidíssimo caso das Mães de Ituzaingó, em Córdoba, em pé de guerra contra as fumigações nas plantações de soja ao redor da sua comunidade, e responsáveis pelo alto número de casos de câncer, malformações em recém nascidos, anemia hemolítica… que afetam a sua população. Em 2012, a Câmara I do Crime de Córdoba deu-lhes ganho de causa ao sentenciar que a fumigação com agrotóxicos era crime e seus autores foram condenados por contaminação dolosa.

Em vários países centro-americanos, o uso sistemático do Dibromo Cloropropano (DBCP) em plantações das Standard Fruit Company, Dole Food Corporation Inc., Chiquita Brands International foi o responsável por centenas de mortes, cânceres, deficiências mentais, malformações genéticas, esterilidade e dores por todo o corpo entre seus trabalhadores. Mesmo que, em 1975, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos considerasse a DBCP um possível agente cancerígeno, as multinacionais bananeiras continuaram a usá-lo. A lista poderia continuar com casos de comunidades afetadas pelo uso de agrotóxicos na Índia, Tailândia, Paraguai e muitos outros países. A agricultura industrial produz doenças e mortes, como demonstram os dados. Quem o negar, mente.

Se falamos de alimentação e saúde é necessário referir-se também ao impacto negativo de alguns aditivos alimentares (aromatizantes, colorantes, conservantes, antioxidantes, adoçantes, adensadores, realçadores de sabor, emulsionantes…) em nosso organismo. Está claro que desde as origens da alimentação existem métodos para conservá-la, e é fundamental que assim seja, caso contrário, o que comeríamos? Entretanto, o desenvolvimento da indústria alimentar generalizou o uso de aditivos químicos de síntese para adaptar a alimentação às características de um mercado quilométrico (onde os alimentos viajam grandes distâncias do campo ao prato), consumista (realçando desnecessariamente a cor, o sabor e o aroma dos produtos para torná-los mais apetecíveis) e que adoça artificialmente a alimentação, com produtos que deixam muito a desejar.

Do aspartame e do glutamato monossódico

Não se trata de colocar todos os aditivos no mesmo saco, mas assinalar o impacto que alguns podem ter em nosso organismo, especialmente os aditivos sintéticos, em comparação com os naturais. O livro Os aditivos alimentares. Perigo, de Corinne Gouget, assinala especialmente dois: o aspartame, codificado na Europa com o número E951, e o glutamato monossódico, com o E621.

O aspartame é um adoçante não calórico empregado em refrigerantes e comida “light”. Alguns estudos apontaram as consequências negativas que pode ter em nossa saúde. A Fundação Ramazzini de Oncologia e Ciências Ambientais, com sede na Itália, publicou, em 2005, na revista Environmental Health Perspectives os resultados de um exaustivo trabalho onde, a partir da experimentação com ratos, assinalava os possíveis efeitos cancerígenos do aspartame para o consumo humano. O informe concluía que o aspartame é um potencial agente cancerígeno, inclusive com uma dose diária de 20 miligramas por quilo, muito abaixo dos 40 miligramas por quilo de ingestão diária aceitos pelas autoridades sanitárias europeias. A Fundação Ramazzini concluía que era necessário revisar as diretrizes sobre sua utilização e consumo. No entanto, a Agência Europeia de Segurança Alimentar (EFSA, em sua sigla em inglês) omitiu estas conclusões e, seguindo a pauta habitual com os trabalhos científicos críticos, desautorizou o trabalho. Não esqueçamos os laços estreitos da EFSA com a indústria alimentar e biotecnológica e como, por exemplo, sua presidenta na Agência Espanhola de Segurança Alimentar é Ángela López de Sá Fernández, ex-diretora da Coca-Cola.

O glutamato monossódico, por sua vez, é um aditivo realçador de sabor muito utilizado em frios, hambúrgueres, misturas de condimentos, sopas, molhos, batatas fritas, guloseimas. Estes últimos, muito consumidos pelas crianças. Em 2005, o professor de fisiologia e endocrinologia experimental da Universidade Complutense de Madri, Jesús Fernández-Tresguerres, um dos 35 membros da Real Academia Nacional de Medicina, publicou nos Anais da Real Academia Nacional de Medicina os resultados de um longo trabalho onde analisava os efeitos da ingestão de glutamato monossódico no controle do apetite. As conclusões foram demolidoras: sua ingestão aumentava a fome e a voracidade em 40% e impedia o bom funcionamento dos mecanismos inibidores do apetite, o que contribuía para o aumento da obesidade e, a partir de certas quantidades, se considerava que poderia ter efeitos tóxicos sobre o organismo. Alguns chegaram a denunciar, informalmente, esta substância como “a nicotina dos alimentos”.

Além do aspartame e do glutamato monossódico, outros aditivos também se mostraram prejudiciais à saúde humana, e acabaram sendo retirados do mercado. Em 2007, a Comissão Europeia proibiu o uso do colorante vermelho 2G (E128), utilizado mormente em linguiças e hambúrgueres, ao considerar, depois de uma reavaliação da EFSA, que este poderia ter “efeitos genotóxicos e cancerígenos” para as pessoas. A avaliação toxicológica anterior foi realizada 25 anos atrás. Outros estudos assinalaram como a mistura de alguns colorantes, muitas vezes utilizados em refrigerantes e “guloseimas”, combinados com a ingestão de outros aditivos presentes por sua vez nestes produtos provocaria hiperatividade infantil. Assim concluía um estudo sobre aditivos alimentares publicado na revista The Lancet, em 2007: “As cores artificiais ou o conservante benzoato de sódio (ou ambos) na dieta provocam um aumento da hiperatividade em crianças de três anos e em crianças entre oito e nove anos”. O maravilhoso e duro documentário francês Nossos filhos nos acusarão, nos recorda, como assinala o seu título, a responsabilidade que temos.

A agricultura ecológica, ao contrário, prescinde destes aditivos químicos de síntese, colocando no centro da produção de alimentos a saúde das pessoas e do planeta. Quem pode considerar, visto o que foi visto aqui, que a agricultura e a alimentação industrial, intensiva e transgênica é mais respeitosa com as pessoas e o meio ambiente que a ecológica? Vocês decidem.


*Artigo publicado por Publico.es, 07/07/2014. Tradução: André Langer | Instituto Humanitas Unisinos.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Em outubro, vote na Fifa.

Por: Francisco Roberto Caporal
Em: 12 de junho de 2014.

Se a Fifa for candidata nas eleições de outubro, eu vou votar na Fifa. Ela mostrou que é melhor gestora que Aécio, Dilma, Eduardo e outros. Ela conseguiu que fossem feitos todos os estádios (que os neo-colonizados chamam de arenas) gigantescos, dentro dos prazos que ela – Fifa – estabeleceu e do jeito que ela queria. E, para que isso ocorresse, puxou as orelhas de governantes das três esferas da federação, que não estavam cumprindo com suas tarefas.

A Fifa conseguiu “hospitais de referência” para a copa. Turistas e delegações podem ficar tranquilos, pois as equipes serão reforçadas e a Fifa não quer ninguém na fila. Coisa rara, num país em que o cidadão comum vem morrendo na porta dos hospitais ou na fila de uma emergência. Além disso, a Fifa exigiu um tempo máximo para que ocorra um atendimento médico dentro dos estádios. Até treinamento houve para atender esta exigência. Na vila onde eu moro, não tem médico no posto de saúde, mas no estádio da Fifa tem.

A Fifa conseguiu colocar mais segurança nas ruas, nos hotéis e nos estádios do que qualquer governo, ao longo das últimas décadas. 100.000 homens e mulheres para a segurança “da copa”. 100.000, só em 12 cidades da copa. Mas, não se preocupem, em julho eles irão embora.

Ela também estabeleceu procedimentos para a evacuação de torcedores, em caso de “ataque terrorista” aos estádios, de forma ordeira, segura e no tempo necessário.

Além disso, organizou as cidades-sedes. Ela determinou que não podemos nos deslocar nas áreas próximas aos estádios.  Até o espaço aéreo, perto dos estádios, será objeto de segurança. E a costa será patrulhada pela Marinha.

A Fifa se preocupou até com a nossa segurança alimentar, estabelecendo o que se pode ou não comer e beber dentro dos estádios e arredores. 

Além disso, a Fifa se apoderou do Tatu-Bola. Deve estar preocupada, pois o bichinho que está em extinção. Resultado da Fifa: só agora governos lembraram de criar reserva para a proteção do “mascote da Fifa”.

Se a gente pesquisar, encontrará muitos outros “feitos” e resultados da Fifa, na gestão deste humilde país. A Fifa não mandou fazer reformas nos aeroportos e por isso elas não ficaram prontas. Também não mandou fazer corredores de ônibus, linhas de monotrilho e outras obras de mobilidade e por isso elas também não ficaram prontas. Segundo nossos governantes eram obras para a copa. Agora dizem que não são mais para a copa, são para o povo. De qualquer forma, segundo especialistas, só 51% das obras para a copa ficaram prontas para a copa.

Quer dizer, o que a Fifa mandou fazer foi feito. O que ela não mandou fazer, isto é, iniciativas de nossos candidatos/governantes, não ficou pronto. Isto demonstra que a Fifa é melhor gestora e, por isso, vou votar na Fifa. E como ela não paga impostos, talvez vá nos dar isenção. 

domingo, 15 de junho de 2014

Monsanto, a semente do diabo

Esther Vivas

“A semente do diabo”, foi assim que o popular apresentador do canal norte-americano HBO Bill Maher batizou a multinacional Monsanto, num dos seus programas e em referência ao debate sobre os Organismos Geneticamente Modificados. Porquê? Trata-se de uma afirmação exagerada? Que esconde esta grande empresa da indústria das sementes? No passado domingo, celebrou-se a jornada global de luta contra a Monsanto. Milhares de pessoas em todo o planeta manifestaram-se contra as políticas da empresa.

A Monsanto é uma das maiores empresas do mundo e a número um em sementes transgênicas, 90% das culturas modificadas geneticamente no mundo contam com os seus traços biotecnológicos. Um poder total e absoluto. Além disso, a Monsanto está à cabeça da comercialização de sementes, e controla 26% do mercado. A mais distância, segue-se a DuPont-Pioneer, com 18%, e a Syngenta, com 9%. Só estas três empresas dominam mais de metade, 53%, das sementes que se compram e vendem à escala mundial. As dez maiores, controlam 75% do mercado, segundo dados do Grupo ETC. O que lhes dá um poder enorme na hora de impor o que se cultiva e, em consequência, o que se come. Uma concentração empresarial que tem vindo a aumentar nos últimos anos e que corrói a segurança alimentar.

A ganância destas empresas não tem limites e o seu objetivo é acabar com variedades de sementes locais e antigas, ainda hoje com um peso muito significativo especialmente nas comunidades rurais dos países do Sul. Sementes autóctones que representam uma concorrência para as híbridas e transgênicas das multinacionais, as quais privatizam a vida, impedem os camponeses de obter as suas próprias sementes, convertem-nos em “escravos” das companhias privadas, além do seu impacto negativo no meio ambiente, com a contaminação de outras culturas, e na saúde das pessoas. A Monsanto não poupou recursos para acabar com as sementes camponesas: processos judiciais contra agricultores que tentam conservá-las, monopólio de patentes, desenvolvimento da tecnologia de esterilização genética de sementes, etc. Trata-se de controlar a essência dos alimentos, e aumentar assim a sua quota de negócio.

A introdução nos países do Sul, em particular naqueles com vastas comunidades camponesas capazes ainda de se proverem com sementes próprias, é uma prioridade para estas empresas. Deste modo, as multinacionais das sementes intensificaram as aquisições e alianças com empresas do setor principalmente na África e na Índia, apostaram em culturas destinadas aos mercados do Sul Global e promoveram políticas para desencorajar a reserva de sementes. A Monsanto, como reconhece a sua principal rival DuPont-Pioneer, é o “guardião único” do mercado de sementes, controlando, por exemplo, 98% da comercialização da soja transgênica tolerante a herbicida e 79% do milho, como assinala o relatório Quem controla as matérias-primas agrícolas? O que lhe dá suficiente poder como para determinar o preço das sementes, independentemente dos seus concorrentes.

Das sementes aos pesticidas

No entanto, para a Monsanto não é suficiente controlar as sementes mas também, para fechar o círculo, procura dominar aquilo que se aplica nas suas culturas: os pesticidas. A Monsanto é a quinta empresa agro-química mundial e controla 7% do mercado de inseticidas, herbicidas, fungicidas, etc., atrás de outras empresas, líderes ao mesmo tempo no mercado das sementes, como a Syngenta que domina 23% do negócio dos pesticidas, a Bayer 17%, a BASF 12% e a Dow Agrosciences quase 10%. Cinco empresas controlam assim 69% dos pesticidas químicos sintéticos que se aplicam nas culturas à escala mundial. Os que vendem as sementes híbridas e transgênicas aos agricultores são os mesmos que lhes fornecem os pesticidas a aplicar. Negócio garantido.

O impacto no meio ambiente e na saúde das pessoas é dramático. Apesar das empresas do sector assinalarem o carácter “amigável” destes produtos com a natureza, a realidade é precisamente o contrário. Hoje, depois de anos de fornecimento do herbicida Roundup Ready da Monsanto, à base de glifosato, que já em 1976 foi o herbicida mais vendido do mundo, segundo dados da mesma empresa, e que se aplica às sementes de Monsanto modificadas geneticamente para tolerar este herbicida, enquanto este acaba com as ervas daninhas, várias são as ervas que desenvolveram resistências. Só nos Estados Unidos, calcula-se que apareceram cerca de 130 plantas daninhas resistentes a herbicidas em 4,45 milhões de hectares de culturas, segundo dados do Grupo ETC. O que levou a um aumento do uso de pesticidas, com aplicações mais frequentes e doses mais elevadas, para as combater, com a consequente contaminação do meio ambiente.

As denúncias de camponeses e comunidades afetadas pelo uso sistêmico de pesticidas químicos sintéticos é uma constante. Em França, a doença de Parkinson é inclusive considerada uma doença laboral agrícola causada pelo uso de pesticidas, depois do agricultor Paul François ter ganho a batalha judicial contra a Monsanto, no Tribunal de Lyon em 2012, e ter conseguido demonstrar que o herbicida Lasso era responsável por tê-lo intoxicado e deixado inválido. Uma sentença histórica, que permitiu criar jurisprudência. O caso das Mães de Ituzaingó, um subúrbio da cidade argentina de Córdoba, rodeado de campos de soja, em luta contra a pulverização é outro exemplo. Depois de dez anos de denúncias, e após ver como o número de doentes de cancro e crianças com malformações no bairro não parava de aumentar, de cinco mil habitantes duzentos tinham cancro, conseguiram demonstrar o vínculo entre essas doenças e os pesticidas aplicados nas plantações de soja locais (endosulfan da DuPont e glifosato do Roundup Ready da Monsanto). A Justiça proibiu, graças a sua mobilização, a pulverização com pesticidas próximo de zonas urbanas. Estes são apenas dois casos dos muitos que podemos encontrar em todo o planeta.

Agora, os países do Sul são o novo objetivo das empresas agroquímicas. Enquanto as vendas globais de pesticidas desceram nos anos 2009 e 2010, o seu uso nos países da periferia aumentou. No Bangladesh, por exemplo, a aplicação de pesticidas cresceu 328% na década de 2000, com o consequente impacto na saúde dos camponeses. Entre 2004 e 2009, a África e o Médio Oriente tiveram o maior consumo de pesticidas. E na América Central e do Sul espera-se um aumento do consumo nos próximos anos. Na China, a produção de agroquímicos atingiu em 2009 dois milhões de toneladas, mais do dobro do que em 2005, segundo assinala o relatório Quem controlará a economia verde? Business as usual.

Uma história de terror

Mas, de onde surge esta empresa? A Monsanto foi fundada em 1901 pelo químico John Francis Queeny, proveniente da indústria farmacêutica. A sua história é a história da sacarina e do aspartame, do PBC, do agente laranja, dos transgênicos. Todos fabricados, ao longo dos anos, por esta empresa. Uma história de terror.

A Monsanto constituiu-se como uma empresa química e, na sua origem, o seu produto principal era a sacarina, que distribuía para a indústria alimentar e, em particular, para a Coca-Cola, de que foi uma das principais fornecedoras. Com os anos, expandiu o seu negócio à química industrial, convertendo-se, na década de 20, num dos maiores fabricantes de ácido sulfúrico. Em 1935, absorveu a empresa que comercializava o bifenil policlorado (PCB), utilizado nos transformadores da indústria elétrica. Nos anos 40, a Monsanto centrou a sua produção nos plásticos e nas fibras sintéticas, e, em 1944, começou a produzir químicos agrícolas como o pesticida DDT. Nos anos 60, juntamente com outras empresas do sector como a Dow Chemical, foi contratada pelo governo dos Estados Unidos para produzir o herbicida agente laranja, que foi utilizado na guerra do Vietname. Neste período, fundiu-se, também, com a empresa Searla, que criou o adoçante não calórico aspartamo. A Monsanto foi produtora, também, da hormona sintética de crescimento bovino somatotropina bovina. Nas décadas de 80 e 90, a Monsanto apostou na indústria agroquímica e transgênica, acabando por se tornar na número um indiscutível das sementes modificadas geneticamente.

Atualmente, muitos dos produtos made by Monsanto foram proibidos, como os PCB, o agente laranja ou o DDT, acusados de provocar graves danos na saúde humana e no meio ambiente. Só o agente laranja foi responsável na guerra do Vietname de dezenas de milhares de mortos e mutilados, bem como de bebés nascidos com malformações. A somatotropina bovina também está vetada no Canadá, na União Europeia, Japão, Austrália e Nova Zelândia, apesar de ser permitida nos Estados Unidos. O mesmo ocorre com o cultivo de transgênicos, onipresente na América do Norte, mas proibido na maioria dos países europeus, com exceção, por exemplo, do Estado espanhol.

A Monsanto, além disso, move-se como peixe na água nos corredores do poder. A Wikileaks tornou isso bem claro quando divulgou mais de 900 mensagens que mostravam como a administração dos Estados Unidos gastou consideráveis recursos públicos para promover a Monsanto e os transgênicos em muitíssimos países, através das suas embaixadas, do seu Departamento de Agricultura e da sua agência de desenvolvimento USAID. A estratégia consistia e consiste em conferências “técnicas” desinformando jornalistas, funcionários e formadores de opinião, pressões bilaterais para a adoção de legislações favoráveis e para abrir o mercado às empresas do setor, etc. Na Europa, o governo espanhol é o principal aliado dos EUA nesta matéria.

Resistências

Perante tanto despropósito, muitos não calam e levantam-se em protesto. As resistências contra a Monsanto são milhares em todo mundo. O dia 25 de maio foi declarado dia de jornada de ação global contra essa empresa e centenas de manifestações e ações de protesto foram levadas a cabo nesse dia em todo o globo. Em 2013 realizou-se a primeira convocação, milhares de pessoas saíram à rua em várias cidades de 52 países diferentes, desde a Hungria até ao Chile passando por Holanda, Estado espanhol, Bélgica, França, África do Sul, Estados Unidos, entre outros, para mostrar a profunda rejeição às políticas da multinacional. No domingo passado, dia 25, a segunda convocatória, menos participada, foi levada a cabo com ações em 49 países.

A América Latina é, neste momento, uma das principais frentes de luta contra a empresa. No Chile, a mobilização conseguiu, em março de 2014, a retirada da chamada Lei Monsanto que pretendia facilitar a privatização das sementes locais e deixá-las nas mãos da indústria. Outra grande vitória foi na Colômbia, um ano antes, quando a massiva paralisação agrícola, em agosto de 2013, conseguiu a suspensão da Resolução 970, que obrigava os camponeses a usar exclusivamente sementes privadas, compradas às empresas do agronegócio, e os impedia de guardarem as suas próprias sementes. Na Argentina, os movimentos sociais estão, também, em pé de guerra contra outra Lei Monsanto, que está para ser aprovada no país e pretende subordinar a política nacional de sementes às exigências das empresas transnacionais. Mais de cem mil argentinos assinaram já contra essa lei no quadro da campanha “Não à Privatização das Sementes”.

Na Europa, a Monsanto quer agora aproveitar a brecha aberta pelas negociações do Tratado de Livre Comércio União Europeia - Estados Unidos (TTIP) para pressionar em função dos seus interesses particulares e poder legislar por cima da vontade dos países membros, muitos deles contrários à indústria transgênica. As resistências na Europa contra o TTIP, esperemos, não se farão esperar.

A Monsanto é a semente do diabo, sem dúvida.

*Artigo publicado em Publico.es em 29 de maio de 2014.
 Tradução de Carlos Santos para Esquerda.net.